quarta-feira, 3 de junho de 2009

Um Homem do seu Tempo

“Tempo. Tempo! Tempo! Não quero perder tempo.O tempo não gosta do que se faz
sem ele”,
diz um sábio ditado do povo-de-santo da Bahia.
A frase acima costumava estar sempre escrita na lousa nas aulas de Gey.
Tenho orgulho de ter sido aluna de Gey Espinheira. De ter convivido, na Universidade Federal da Bahia, no Curso de Ciências Sociais, com ele, personalidade fundamental na minha formação intelectual, na minha sensibilidade, na minha maneira de pensar e fazer sociologia dos episódios da vida.
Suas aulas eram palestras sócio-antropológicas, permeadas pelo olhar perscrutador de quem verifica o óbvio, por uma lente mais profunda, capaz de indagar lados e versões e imiscuir diferentes teorias e lógicas para sondar o insondável, para abrir novas perspectivas e concepções sobre as produções científicas.
Gey era produtor de fascínios e com tal leveza de professor e artista, seus encontros-aulas sempre nos levava a burilar o universo das Ciências Sociais, como um grande laboratório existencial.
Para além de um mero “transmissor” de conhecimentos, Gey provocava um agir conjunto, um despertar, no sentido mais próprio do ver, ser e estar no mundo.
Já formada, e ainda assídua em busca dos lugares em que sabia que este estaria dando palestras, fazendo considerações, eu sempre observava o público, e com tal simpatia, ele aguçava os desejos de quem o ouvia falar, mobilizava com sua retórica o exercício de expandir o agir individual no agir coletivo, num valor que por diversas vezes perdemos ou esquecemos de praticar, porque só existe no fazer conjunto, a solidariedade e a generosidade.
Falo de Gey a partir da experiência e do aprendizado que esse encontro imprimiu em mim, em tempos de juventude e confusão, em que a teoria se me apresentava distante da prática, como um arsenal inútil para uma “guerra”, o cotidiano, o mercado de trabalho, o devir, que eu, e acredito que muitos de nós, não sabia exatamente como enfrentar.
Na dimensão existencial descobri em Gey, um aporte, um interlocutor, porque com propriedade apresentou-me inúmeras possibilidades de conjugar emoção e razão, teoria com um jeito próprio que eu devia descobrir, sem medo, e fazer a minha trajetória da poética sociológica, que ele, como poucos, sabia ser possível. Não como um arranjo ingênuo, que muitos consideram, mas como uma forma inerente de analisar os fatos e propor interpretações.
Incansável em sua maturidade intelectual e vigorosa, disse-me certa feita, num dia em que eu, miseravelmente cansada de tantas leituras, de que era preciso mais, “insira ritmo e leia ao menos cinco livros por semana. É preciso ler tudo o tempo todo”. Perplexa, sorri e disse-lhe que iria tentar.
Hoje compreendo de que para além de livros, de diversos autores (as), falava-me também da leitura do mundo, da vida política e social, das pessoas, das comunidades, da teia social que se forma e da qual somos formadores. E mais que isso, que somos nós, agentes dessa teia, capazes de desenvolver com e através dela, novos caminhos que se expressam pela vontade e liberdade, que temos de acreditar e contribuir, de mudar e sermos mudados, mas sobretudo da beleza de esperançar em nós e no outro, um mundo possível e que lateja, como um ideal a ser confirmado.
A sua calvície diante de um emaranhado de fios brancos, harmoniosos, a sua longa barba, que por mania ou hábito, usava passar a mão, como que alinhando os pensamentos complexos que investigava, como mistérios a serem desmistificados, resultado de conjunturas variadas que polarizam uma a outra, num intersecção sutil,elétrica, capaz de compor inúmeras trajetórias que incidem na vida de todos nós, que nos afetam e afetam ao meio-ambiente, e exigem portanto ações que se não são de defesa, e pousam inertes nos seres viventes, são então, de inércia e destruição.
Não ousamos mais falar em utopia, mas Gey o fazia, lembrando-nos sempre do tempo, o Senhor de Todos nós, matéria que permeia todas as coisas existentes, como se na ampulheta da vida, tivéssemos ali, grão a grão, a possibilidade solitária e coletiva, de fazer arranjos, de criar, na multiplicidade do que cada um aprendeu a ser, diferentes formas a ser apresentadas, feitas e desfeitas, no grande caleidoscópio de existir-interagir.
Em pequeno trecho de seu texto, “A Grande Corrida do Seca Seca”, Gey Espinheira escreveu, “Nós somos feitos de tempo: carne e osso; ah! bem isso, corpo! Mas nós somos feitos de alma, espírito, corpo que deseja e que sofre e que goza. A gente se alegra, ri, mas também entristece....”
Gey, como poucos, sabia falar das ansiedades produzidas em todos nós pela sociedade, mas sem ‘negativá-las’, acreditando que estas fazem parte do estar no mundo, da crise necessária, das contrações que geram a vida, e se partilhadas, comungam objetivos comuns capazes de transformar a realidade individual e social.
Lembro-me então de uma frase de Hermann Hesse em um livro que não sei mais qual foi, mas que dizia “ a realidade é algo que não devemos levar a sério”. Entre esta frase e o pensar “geyniano” que aprendi a conhecer e respeitar, ouso arriscar, que seu significado implica que por si só, as coisas dadas, postas, não devem ser super-valorizadas, mas na mobilidade do binômio indivíduo versus sociedade, podemos alterar, constranger, interagir, modificar.
A Gey agradeço pela simplicidade com que me apresentou novos mundos, pensados por muitos autores e também por ele. Agradeço também por em uma tarde, era primavera, me lembro, em que me ofereceu uma jóia literária da fina poesia de Ruy Espinheira, que mastigo até hoje, lentamente, relutante em digerir tão preciosos versos.
Com ele pude conviver apenas dois semestres na faculdade, afora os encontros da vida pública, e tenho tanta matéria-prima guardada, frutos desses encontros, que imagino quanta multidão de experiências, trocas, aprendizados não devem permear as almas dos que com ele conviveram por 10, 20, 30 anos.
Hoje estou muito triste. Não pela morte, passagem inevitável para cada um de nós. Mas, sobretudo porque ouso modificar um velho ditado que Gey me dizia, quando de certos encontros com ele, penso que agora direi assim 1 “nada será como antes no quartel de Abrantes”
...

Nenhum comentário:

Postar um comentário