quarta-feira, 21 de outubro de 2009

"No fundo do peito estaos juntos, no canavial do peito percorremos um verão de tigres, à espreita de um metro de pele fria, à espreita de um ramo, inacessível cútis, com a boca farejando suor e veias verdes nos encontramos na úmida sombra que deixa cair beijos " (Pablo Neruda)

Então as estrelas descem e povoam o corredor azul. Borboletas, flores, helenas, percorrem a noite vazia dos meus olhos.
O meu silêncio não te adivinha um segredo, pois tua alma gela perdida no esquecimento. Por dentro, até que por dentro, tens um bosque e tens também um rio sangrento que não sacia tua sede.
Quando chegas, não chegas ainda. Teus pés, tuas mãos, tua boca não finda e és como um encontro incessante da onda e da areia e ainda não chegas e me pergunto, onde então ficaste ? Talvez no trânsito congestionado em que percebias aquela loura indiscreta num carro importado. Ficaste quem sabe no escritório, dentro do armário, ou nas preocupações de amanhã que te consomem hoje. Ou ainda permaneces dormindo, embora eu saiba que estás acordado.
Se há alguém que não sei, este alguém és tu, amado homem. Amado homem.
E na força desta expressão há uma mão que toca um sino de uma pequena igreja perdida no alto da serra e o som do sino atravessa longas distãncias e chega até mim, para anunciar a morte, o fim, de corpos que se entrelaçam por detrás da janela, em cima da cama, na parede do quarto.
Se entrelaçam sem perfume nem cor, assaltados, sacudidos, desprendidos de pudor. Corpos quentes à espreita do tempo.
Um raio ferido, teu nome me assassina e quando passas, fico em ruína.
O coração selvagem deixa cair um fio de sangue na minha pele fria, meu próprio sangue fareja inacessíveis veias.
Descubro-te depois de tudo, depois de percorrer anos e anos a tua cútis úmida, a tua lua habitual. Quantas coisas aconteceram desde então ?
Não pergunteis: é insondável o escudo que trago no fundo do peito, deixai-me e enquanto vivo, apenas continuo. Tua existência é de carne, tua alma, indelével sombra para mim.
Quantas noites sem dormir, de olhos abertos, estampados no teto, delineando teu rosto, hora após hora, dia após dia.
E nada permanece, mas tu permanecias. Houve guerra, houve paz, houve dor e desilusão, houveram muitas fúrias aplacando meu coração, mal sentada a poeira, passado mais um verão, ali estavas, verdadeiro como uma especial solução.
O que tenho é poesia ou amor ?
Uma gota de teu suor e eu já era feliz.
Nos encontramos no fundo de um terreno sem mar, sem ondas, nos encontramos sem trajes. É certo que o mundo mudou, mudamos também e nesse estágio de mudanças permanecer já não convém.
Mudei, mudamos e nesse estado vicioso já nem mesmo nos beijamos e a pena não ocupa, não pode ocupar, a certeza de que nos amamos, ainda que por um instante e se só com um ramo de poesia deixo cair todos esses anos, é para que brilhe logo essa lua altaneira que ilumina futuros enganos.
Tem dias que eu raspo a panela vazia dos meus sonhos e encontro naquela farofa macia a velha saudade dos tempos de outrora,
da barra nunca rendada do vestido envelhecido que minha mãe usava,
de tão velho brotava sobre ele musgos imaginários que acalentavam
minha infãncia dourada.
Tem dias que salto vazia pela poeira do tempo
e adentro correndo nos cômodos do que fui,
e me vejo brincando de ser grande e inalcansável,
grande como a lua ou como uma artista de cinema,
ou como a árvore madura da minha lembrança.
A rua deserta do meu interior,
ainda resiste em mim,
não como agora, deserta,
mas repleta de coisinhas sem fim.
Meninos em cima dos muros empinando pipas multicores,
bandeirolas em dias de festa,
gudes em tantas esquinas,
tudo isso rimando com o pôr-do-sol encantado que trago de cada olhar.
Nenhum deles se foi na minha fantasia,
pois banham perdidos em minha alma essa antiga alegria.
Olhando assim tudo agora,
o que vejo ?
Essa casa vazia, repleta de invisíveis poemas colhidos no meu dia-a-dia
e a panela que ainda hoje raspei com as sobras do que almejei,
foi também resto amolecido da criança que por maldade
um dia exilei.